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O romance que perdi

¿O que é que um romancista sente quando um realizador de cinema adapta a sua obra para a transformar num filme? Alejandro Zambra, o autor do romance que serviu de mote para que Cristián Jiménez filmasse Bonsai, pensa que um livro é como um filho que vai embora de casa: os pais querem que tudo lhe corra bem, mas isso já não está nas mãos deles. Zambra agora acha que, com o filme de Jiménez, perdeu a sua história. E é belo, diz.

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© Jirafa Films.

Escreve ALEJANDRO ZAMBRA

Não queria, realmente não me interessava, que Bonsai se transformasse num filme. Disse que não a um realizador e depois também ao Cristián Jiménez, que passado pouco tempo insistiu e eu voltei a recusar, mas desta vez pedi-lhe para me deixar ver o seu trabalho. E o que aconteceu foi que Ilusões óticas, o seu primeiro filme, me comoveu como não me acontecia há muito tempo. Cativou-me o seu olhar, a sua busca, que senti diferente da minha, mas também, noutro plano, muito próxima, familiar. Então deixei de ser o escritor relutante e senti-me orgulhoso de que alguém como ele desse valor ao meu livro.

Confiei instintiva e quase imediatamente no Cristián e decidi que, acontecesse o que acontecesse, eu não seria de modo algum o típico escritor ressentido com a adaptação do seu romance. Pelo mesmo motivo, pensei que, se não gostasse do filme, me manteria em silêncio. Mas tinha um bom pressentimento. Pensava, nomeadamente, na cena final de Ilusões óticas, com a maravilhosa Paola Lattus e o Iván Álvarez de Araya frente a frente. Não o vou contar aqui, mas para mim é um dos finais mais arriscados e belos que vi num filme (e não deixa de ser, incrivelmente, um final feliz).

Não foi fácil, para o Cristián, escrever o argumento. Por diversas vezes sentiu que naufragava. De vez em quando juntávamo-nos para almoçar e falar do romance, e a minha posição era estranha mas bastante confortável, porque eu não me sentia artisticamente comprometido no filme, por assim dizer: não era o meu filme, não tinha qualquer obrigação, e além disso estava a escrever Formas de volver a casa, o que me absorvia inteiramente. O Cristián fazia-me perguntas que ninguém me fizera, porque lia Bonsai uma e outra vez, desapiedada e carinhosamente. Lembro-me principalmente de uma manhã, quando lhe abri a porta e me disse, a modo de cumprimento, como os polícias: quero que falemos sobre a morte de Emilia. E, realmente, senti-me um pouco culpado por a ter matado.

Leyendo a Proust
© Jirafa Films

 Os primeiros contactos com Jiménez tiveram lugar a meados de 2008, um ano depois de aparecer A vida privada das árvores, o meu segundo romance. E na tarde em que nos juntámos pela primeira vez, no Olán grande da Av. Seminario, eu acabara de escrever algumas páginas que andava a procurar havia meses, e estava feliz porque me estava a começar a aproximar daquilo que acabaria por ser Formas de volver a casa. Digo isto porque há uma relação importante entre esse romance e o filme, que acabaram por aparecer quase ao mesmo tempo; aliás, apresentei o romance em Santiago, no dia seguinte parti para Barcelona e uma semana depois estava em Cannes, para a estreia de Bonsai.

No filme persistem algumas marcas do romance, como a menção a Buenos días, o filme do Ozu, um dos cineastas que comentámos com Jiménez, porque por vezes também nos juntávamos para ver filmes. Já éramos dois amigos que falavam sobre qualquer coisa enquanto ele tomava chá (como o Julio do seu filme) e eu tomava café (como o Julio do meu livro). Nunca esquecíamos do todo, no entanto, aquilo que nos convocava. Desses diálogos eu extraía pequenas convicções suplementares sobre a criação literária. Ao observar a forma como Cristián lidava com os materiais, eu voltava a pensar na especificidade da literatura, aquela pregunta clássica do estruturalismo: o que é o propriamente literário num romance ou num poema, o que é que não se pode fazer por outras vias, noutra linguagem.

Cristián fazia-me perguntas que ninguém me fizera, porque lia Bonsai uma e outra vez, desapiedada e carinhosamente

 Quando o Cristián me mandou a primeira versão do argumento, comecei a lê-lo com um espírito mais desportivo, mas a experiência afetou-me de forma inesperada e radical. É-me difícil exprimir esta ideia: eu sabia que o romance se transformaria noutra coisa, numa obra muito diferente, alheia, e realmente desejava isso, mas ao ler o argumento pela primeira vez, apesar de o ter achado bom e de reconhecer nele soluções espantosas, senti que o meu romance tinha sido violentado ou rabiscado, que o livro já não existiria.

Nessa tarde, quase sem me aperceber, fui andar, rumei em direção à casa onde vivia quando escrevi o Bonsai e fumei vários cigarros a olhar para a fachada. No Formas de volver a casa, o protagonista faz algo muito semelhante, mas agora confundo-me e não sei se escrevi a cena antes ou depois daquela tarde em que, para o dizer convencionalmente, vivi o meu dolo.

Gosto de pensar que quando publicamos livros é como quando os filhos vão embora de casa: queremos que tenham sorte, mas é pouco ou nada o que podemos fazer por eles. E interessa-nos muito mais o livro que estamos a escrever agora, o que estamos a criar. Aquela tarde, sentado na vala, pensei que dali em diante o meu romance viveria muito longe, e que talvez caminhasse para se tornar num daqueles filhos ingratos que nunca telefonam.

Julio y Bárbara
© Jirafa Films.

 O que aconteceu depois foi simplesmente tempo. Entre o romance e o filme há diferenças de toda a índole, e algumas irão dividir águas. Eu gosto de que seja assim. Obviamente, se eu tivesse feito o filme, seria muito diferente: estaria ambientado integramente em Santiago, teria outra música, outra velocidade, outro humor: tudo seria diferente. Mas eu não faço filmes. E, noutro sentido, sinto-me muito próximo do que o Cristián viu no livro. É um privilégio, sem dúvida, alguém ler o nosso livro tão a fundo e concretizar uma leitura própria, autónoma.

Depois soube que a Trinidad González, uma atriz que adoro, ia participar no filme, e que o Diego Noguera ia fazer o papel principal, o que me deixou contente, pois acabava de o ver em Turistas, de Alicia Scherson. E depois estive quatro meses na Cidade do México e não era previsto, mas esse tempo acabou por coincidir com as filmagens, o que lamentei enormemente, porque teria adorado ir aos locais e infiltrar-me um pouco nesse mundo.

Ao observar a forma como lidava com os materiais, eu voltava a pensar na especificidade da literatura, aquela pregunta do estruturalismo: o que é o propriamente literário num romance, o que é que não se pode fazer por outras vias, noutra linguagem

Cubierta de la novela Bonsái
La novela.

 Quando o Bonsai foi publicado, em fevereiro de 2006, alguns escritores reagiram irritados contra o livro, e o argumento era que não se tratava de um romance mas sim de um conto longo, uma novela. Definir o romance como género é impossível, mas de qualquer forma persiste a ideia de que se trata de uma narração longa, de duzentas ou mais páginas (e quanto mais longa for, melhor, mais romance é). Eu não queria, em rigor, escrever um romance, mas sim uma espécie de simulacro ou de resumo de romance: do mesmo modo que um bonsai é e não é uma árvore, eu queria um livro que fosse e não fosse um romance. De resto, se o Bonsai tivesse sido publicado junto a outro conto, ter-se-ia dito que era um conto longo, e quase ninguém o teria aceitado como romance. Mas eu não queria publicar o Bonsai na companhia de outro conto. Era, para mim, um livro, uma unidade. Esse era o projeto. Até cheguei a pensar em acrescentar-lhe este subtítulo: romance de brinquedo.

 O Bonsai do Cristián Jiménez, pelo contrário, é um filme e não uma curta-metragem. Lembro-me de um ensaio em que Susan Sontag diz que um filme de hora e meia equivale a um conto e não a um romance, e que esse é o grande erro das adaptações, pois os cineastas vêem-se obrigados a simplificar de mais. Também era esse o meu maior medo, por isso é que eu não tinha aceitado as ofertas anteriores: não queria que simplificassem o romance em nenhum sentido. Não queria, especialmente, que o filme gritasse o que no romance é sussurrado. O Cristián pensava o mesmo. Numa reunião inicial eu perguntei-lhe se o romance lhe parecia “filmável” e ele respondeu-me que não, que nada disso. Era precisamente por isso que lhe interessava adaptá-lo.

É muito estranho o romance ser mais curto do que o filme. O Bonsai lê-se em menos de uma hora e o filme dura noventa minutos. E, embora neste romance as personagens finjam ter lido um livro, gosto de pensar que, urgido pelo teste iminente, desta vez um estudante irá preferir ler o romance.

Edi Pistolas
© Jirafa Films

 Vi o filme em Cannes, no meio do nervosismo geral, e ainda não decifro o que senti na altura. O ecrã de certo modo era um espelho, porque muitas das frases que aquelas personagens diziam era eu que as tinha escrito ou tinha vivido. E, no entanto, aquilo não era meu, era do Cristián e dos atores e daquela quantidade quase inverosímil de pessoas que trabalham num filme. Senti um grande misto de alegria e sossego. E a certeza de que já perdi essa história: de que, se agora me pertence, é de uma forma nova e profundamente coletiva. E isso, sem dúvida, é belo.

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