Ricardo Darín é um daqueles atores em quem nada do seu físico parece destacar até nos cruzarmos com o olhar magnético dos seus olhos azuis sobre umas olheiras de eternas noites más. Isso, e a credibilidade que consegue ter em cada uma das suas interpretações de personagens obscuras e mal-humoradas, tornou-o numa das personagens mais amadas do cinema ibero-americano atual. O repórter ítalo-argentino Enrico Fantoni pergunta-se: É possível ser encantador as 24 horas do dia? A sua crónica, publicada originalmente na revista peruana Etiqueta Negra, ensaia uma resposta.
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Escreve e fotografa ENRICO FANTONI
PRIMEIRO ATO
Uma tarde do último inverno, Darín abre-me a porta de sua casa e faz cara de Darín. É a mesma que já vimos em dezenas de filmes: os seus olhos azuis fixam-se ininterruptamente nos nossos e os cantos dos lábios arqueiam um pouco para cima, não o suficiente para provocar um sorriso, mas sim para nos sentirmos uns eleitos. Em pé, debaixo da ombreira da porta de madeira da sua casa em Palermo, um antigo bairro de oficinas mecânicas e pessoas que bebiam mate nos passeios, hoje chamado Palermo Hollywood pelos vendedores imobiliários, a sua cara dispara-me uma espécie de efeito pavloviano de memória emotiva: olho para Darín –o ator premiado por filmes como Nove rainhas, O filho da noiva, O segredo dos seus olhos, Um conto chinês ou Elefante branco– e tenho a enganadora mas intensa impressão de o conhecer de toda a vida, como se fosse um irmão extraviado e voltado a encontrar anos depois. Não se lembrava deste encontro combinado um mês antes com a sua agente, e agora tem a casa com pessoas reunidas para trabalhar num argumento. Apresenta-me as desculpas numa sequência crescente: “Não quer ir à casa de banho?”, e faz-me um gesto para o interior da casa. “Um café, talvez?”, oferece, e indica-me uma cozinha que se abre à sua direita. “Mil desculpas de novo. Estas coisas não me costumam acontecer”. Pede-me um cartão para me telefonar e marcar outro encontro.
Já na rua, chamo o primeiro táxi que passa.
Darín não sai da sua porta até eu abordar o carro.
Cumprimento-o da janela.
No dia seguinte, o ator telefona-me.
Com mais atenção ao meu tempo do que ao dele, pergunta-me que dia e a que horas me dá jeito encontrar-me com ele.
INTERVALO
Num dos seus últimos filmes, Um conto chinês, Darín é um veterano soldado da Guerra das Malvinas que trabalha numa loja de ferragens: rude, antipático, lunático. Um perdedor. A sua rejeição do mundo exterior é personificada por uma vizinha simpática de mais, uma jovem que, sem deslumbrar pela sua beleza, possui uma singular personalidade que usa para o tentar seduzir com uma afetuosa casmurrice. Darín, sem maquilhagens, é o completo oposto. Na Grécia de Sófocles e Eurípides, dizia-se de um ator ὑποκριτής: hipócrita. Literalmente: aquele que interpreta. Não é o único caso de uma palavra que se afastou do seu significado original: na Grécia antiga, os mestres eram pedantes. Hoje os atores conservam essa hipocrisia etimológica das origens. Um especialista como Vittorio Gassman, il mattatore da época de ouro do cinema italiano, costumava dizer: “L’attore è un bugiardo al quale si chiede la massima sincerità”: o ator é um mentiroso a quem se pede total sinceridade. O próprio Gassman era, à sua maneira, um hipócrita: sedutor e vital no ecrã, foi vítima de depressão na sua vida. Na história do cinema, há uma grande lista de hipócritas, homens e mulheres cujas vidas privadas diferem de forma substancial da imagem que construíram de si próprios no ecrã –de Rock Hudson, o arquétipo do macho sedutor dos anos cinquenta que oculta no armário o seu gosto pelos homens, até Lindsay Lohan, a menina Disney de filmes familiares que entra e sai de clínicas de reabilitação. No entanto, a hipocrisia de Darín não se prende com vícios nem preferências sexuais. Encarna personagens obscuras, mal-humoradas, quase afásicas; por outras palavras, perdedoras. Mas mesmo quando tem más notícias para nos dar, como quando nos abre a porta de sua casa para nos dizer na cara que se esqueceu de uma entrevista connosco, Darín consegue conquistar-nos.
SEGUNDO ATO
Dois dias depois, Darín abre-me novamente a porta de sua casa em Palermo e volta a fazer cara de Darín. Vou à entrevista com a minha namorada. Foi ela que me pediu. Na Argentina, se todos tivessem a oportunidade, fariam os possíveis para conhecer Darín. Já em sua casa, percebo que não é assim tão boa ideia levar a namorada para uma entrevista com Darín. A possibilidade de esses olhos azuis intercetarem, nem que seja por acaso, os da nossa mulher é –admito– inquietante. A casa de Darín é, na verdade, duas casas –duas casas antigas–, típicas daquilo que em tempos foi o bairro de Palermo Viejo. As duas foram unidas derrubando a parede que as separava. A da esquerda tem uma galeria com chão de xadrez e colunas de ferro fundido, que sustentam um teto no qual trepa uma hera. No fundo desta primeira casa há um enorme casarão para onde Darín se dirige agora, e nós atrás dele. Por trás de um vestíbulo mobilado com moles cadeirões beges, abre-se uma grande sala vazia que parece a nave principal de uma igreja. Na parede do fundo, no lugar que deveria estar ocupado pelo altar, está um ecrã de cinema. Não é uma tela em branco, nem sequer uma daquelas que se usam com os projetores caseiros, mas sim um autêntico ecrã de cinema. O teto desta sala é muito alto, com duas águas e vidrado. Parece ter sido uma antiga fábrica e é inundada por uma luz uniforme e maravilhosa. Incrustadas numa das suas paredes, estão duas barras de ginásio. Numa delas balança-se, de cabeça para baixo, a figura invertida de uma mulher com o cabelo emaranhado e os braços cruzados sobre o peito, como se quisesse evitar que uns frutos imaginários se soltassem e caíssem no piso.
–Casei com um morcego –diz Darín.
Apresenta-me Florencia Bas, a sua esposa, uma psicanalista que se solta da barra na parede com o rosto vermelho.
Apresenta-me também o filho, um jovem ator de cerca de vinte anos com cabelo encaracolado e um bigode fininho, que chamam El Chino.
E o cão Marón, um spaniel de cor café com leite que o segue onde quer que vá.
A filha mais nova –parece– não está em casa.
Parece um axioma quase todos gostarem dele: é amável, está sempre disponível e não tem nenhuma atitude de divo. “Ser ator é um descanso de nós próprios”, diz a título de confidência. “Dá-me a impressão de entrar e sair da minha vida”
Darín traz-nos chávenas de café e acende o primeiro dos seus cigarros. Olha-nos com os seus olhos azuis que ao princípio nem se notam, uns olhos azuis rasgados e cavados, perdidos entre uma cabeleira entremeada de cabelos brancos e espessas olheiras, uns olhos azuis que usa mais para bisbilhotar do que para seduzir. Quando sorri, saltam à vista uns proeminentes dentes incisivos. É um cinquentão em forma que cuida do corpo sem ser maníaco: é evidente que faz algum tipo de exercício, mas também é evidente que é um fumador capaz de acabar com um maço em poucas horas. Uma grande quota do seu encanto reside na sua aparente falta de esforço para encantar.
Há até nele uma dose homeopática de boicote contra ele próprio. Durante uma hora e meia conta-me, por exemplo, sobre os seus pais. “Dois bons atores sem sorte: acho que muito do meu sucesso é uma espécie de compensação que lhes devo a eles”. Diz-me que nunca teve de pedir trabalho a ninguém. “Nesta profissão, pedir trabalho é a melhor maneira de não o ter. Quando precisas dele, não to dão”. E define-se a si mesmo: “Politicamente incorreto e socialista por natureza”. O ator salta de um assunto para outro com agilidade e, de vez em quando, agarra-se a um ou outro episódio como bordão da conversa. Ri-se das suas anedotas e também das nossas, e não tem problemas em levar a anedota até um lugar menos confortável e mais cáustico. O seu humor não é assim tão gratuito. No fim da tarde, depois de nos despedirmos, Darín fica novamente em pé à porta de casa. Espera até o meu táxi dobrar a esquina.
INTERVALO
Em Buenos Aires, a boa onda de Darín é um tema de conversa entre amigos. Uma multidão de pessoas pode comprová-la: o taxista que me leva à entrevista e que em novo costumava parar na esquina de casa dele (“Bom tipo, todos os dias me ia comprar os cigarros”), os jornalistas que o entrevistaram e a quem recorro (“No meio do caos das filmagens de Nove rainhas, deu-me quarenta minutos para lhe fazer um retrato, e no fim da sessão perguntava-me se estava satisfeito, se precisava de mais tempo”, lembra um fotógrafo), os seus vizinhos de Palermo Hollywood (“O tipo, quando comprou a casa do lado, deixou que a velha que lá vivia ficasse todo o tempo que quisesse”, diz-me um). Até os meus vizinhos se juntam ao coro: por acaso, no corredor de minha casa filmaram-se cenas de O segredo dos seus olhos, e os trinta e tal habitantes do prédio lembram por unanimidade que Darín é um amor (“É tão boa onda que até dá raiva”, resume o meu vizinho do apartamento do lado). O desenhador Liniers citou numa das suas bandas desenhadas uma deixa da personagem de Darín nesse mesmo filme: “Ouve-me, cabrão”. Depois, numa entrevista, explica porque é que incluiu pela primeira vez um palavrão nas suas tiras cómicas: “Acontece que Darín diz palavrões de uma maneira tão artística que pôr um “cabrão” dele é como por o peito da Vénus de Milo”. Há alguns anos, quando três delinquentes assaltaram a sua casa e trancaram a mulher e a filha, em vez de exigir mão dura, o ator reagiu com boa onda: “O que é que leva três tipos a irem roubar? A responsabilidade de os formarmos é nossa, e não acho que estejamos a fazer o necessário para terem educação, saúde, contenção nas escolas e para os seus pais terem emprego”, declarou naquela ocasião. Parece um axioma quase todos gostarem dele: é amável, está sempre disponível e não tem nenhuma atitude estúpida de divo. Parece-lhe pretensioso falar em voz alta da sua carreira e não é uma pose diante da imprensa de espetáculos. A sua proverbial boa onda é tão pessoal que, uma vez que experimentamos o fluxo da sua atenção, não tardamos a perceber –não sem algum pudor– que, apesar nos termos metido durante anos com os que se babam por algum famoso, já fazemos parte da legião dos seus fãs incondicionais, e não conseguimos esperar para contar a todos e engordar ainda mais o seu mito de sedutor inexorável. Uma noite, dou por mim a dizer num jantar com amigos:
–Darín responde aos SMS passado cinco minutos.
Hoje, quando tem pouco mais de cinquenta anos, Darín encarna, às vezes sem querer, o papel de ícone do homem argentino, isto é, do homem que cada argentino gostaria de ser. E, ainda mais, do homem que cada argentino está convencido de ser, dado o verificável complexo de superioridade que os seus homens –o cliché dos portenhos– delatam: uma indefinível mistura de excelência física, sedução verbal e caráter vencedor, de sucesso com mulheres e amigos e, ainda para mais, bom pai (aquilo de bom marido aplica-se no caso de Darín, mas não é um gadget essencial da argentinidade). Para a sua fértil indústria cinematográfica, Darín é o prócere imprescindível. Quando, no ano passado, o Grande Júri da Fundação Konex lhe concedeu em Buenos Aires o prémio para o melhor ator da década, a primeira frase do seu discurso de agradecimento foi um irónico “fez-se justiça”, seguido pela sua gargalhada irreverente. Assim parece ser, de quando dá um discurso até quando nos telefona. E Darín não faz nenhum esforço para nos convencer de que não acredita nada na sua fama. É um daqueles casos de rara imunidade aos rituais e protocolos em que uma pessoa parece ser mesmo aquilo que vemos.
–Ninguém neste mundo teve mais sorte do que eu –diz-me, ao pedir-lhe um resumo da sua carreira.
O protagonista de Nove rainhas devia ir para outro ator, mas ele recusou e chamaram-me a mim”, lembra Darín. Tudo lhe aconteceu com uma facilidade tão inverosímil que quase se desculpa pela sua sorte
As ocasiões surgiram sem ele as perseguir; apareceu na televisão junto dos pais, ambos atores, a uma idade em que a maioria das crianças aprende a não molhar as cuecas (“Estreei-me como se estreia no circo: era preciso uma criança, e lá está o filho do domador”); adolescente desajeitado, torna-se na cara da Pepsi nos Estados Unidos porque uma secretária o põe à força na sala onde estão a fazer um casting (“Quase caio de frente no meio da sala, cheia de modelos altos e lindos, a empurrar os que estavam de costas para a porta, e o ianque grita: quero esse!”). Até o papel mais importante da sua vida, o que o lançou ao estrelato, lhe caiu em cima por acaso (“O protagonista de Nove rainhas devia ir para outro ator, mas ele recusou e chamaram-me a mim”. Tudo lhe aconteceu com uma facilidade tão inverosímil que quase se desculpa pela sua sorte.
–Curti o ofício –diz-me, como se fosse um carpinteiro.
Os antepassados do ator mais carismático do cinema em espanhol trabalharam o seu futuro. O bisavô de Darín foi um dos argentinos que desceram de um barco. No seu caso, o barco vinha de Itália, e o filho –o avô de Darín– foi um empresário teatral que chegou a ter uma sala própria, o Marconi, um teatro de mais de mil e quinhentos lugares na central avenida Rivadavia, uma das mais importantes de Buenos Aires. O Marconi ficou para um administrador que falsificou os títulos de propriedade após a morte do dono. O jovem Darín, figlio d’arte, cresce entre as operette que se dão no teatro do avô, o futebol do pequeno campo perto de casa –jogava colado à risca, adepto do River–, o culto do cinema neorrealista italiano e a Santíssima Trindade da representação de Alberto Sordi, Vittorio Gassman e Nino Manfredi (“E Marcello Mastroianni?”, reclama. “Estamos a esquecer-nos de Mastroianni!”), mais uns ocasionais trabalhos em publicidade. O futuro ator, bom rapaz, levava dinheiro para casa.
Sem nunca ter estudado representação, Darín chega ao cinema graças ao filme de um realizador italiano com um nome improvável: Catrano Catrani. He nacido en la ribera, o filme em questão, nunca irá entrar nos anais da história do cinema salvo por um único pormenor: no início dos anos setenta, durante a filmagem, um Darín adolescente conhece uma loira Susana Giménez, que na altura já era estrela do cinema e da TV argentina. Anos mais tarde irão começar um romance prolongado, após o qual Darín irá conseguir a proeza de ser, entre noventa e três namorados recenseados de Susana Giménez, um dos poucos a não ter acabado mal com ela. Hoje definem-se como amigos íntimos. No fim da década de setenta, Darín representa em dez filmes diferentes e quatro deles têm a palavra amor no título: Los éxitos del amor, La carpa del amor, La playa del amor —os três filmados em 1979, ano atarefado e muito amoroso— e La discoteca del amor, que filma no ano seguinte. Assim, no campo de batalha, ganha a pertença ao clube dos galãs, jovens atores de telenovelas cuja telegenia não vinha sempre acompanhada por doses equivalentes de talento. Numa época inocente, anterior ao dilúvio dos parvos teen-angels e dos tristes boy-toys. Não foi o seu caso: nos anos seguintes, aplicando o preceito da sua filosofia de estar sempre em movimento, Darín faz tudo –rádio, televisão e cinema, mas principalmente teatro–, como ator e realizador. Faz Sugar –uma comédia musical com Susana Giménez na qual ele canta e dança– e Art, um drama que dura doze anos nos palcos de Buenos Aires e Madrid. A sua popularidade vai-se transformando em prestígio e, de repente, começa a despertar o interesse do cinema sério, ou é o cinema argentino que fica sério e começa a reparar nele.
Os anos do governo de Menem, os do câmbio de um dólar por um peso, deixam a Argentina prostrada, e uns anti-heróis começam a ocupar os ecrãs em vez dos yuppies. Darín, o homem mais sortudo do mundo, está pronto. É a sua vez de interpretar um daqueles papéis que marcam a carreira de um ator: em Nove rainhas, de Fabián Bielinsky, Darín é um aldrabão inexpressivo que mal esboça um sorriso no filme inteiro. A sua representação de Marcos, o mestre de mil maldades do novato Juan, numa Buenos Aires onde paira a iminente catástrofe económica, consagra-o. Nessa altura Darín passa dos quarenta, liberta-se da carga de ser um galã e desconfia de que Nove rainhas –una história que foge da crónica de costumes de alguns dos seus anteriores trabalhos, e com um realizador muito jovem e ambicioso– era a ocasião que aguardava. O filme tem um sucesso mundial, e Darín inaugura a primeira das suas personagens arquetípicas. As seguintes serão variações desta identidade.
Trata-se de um homem solitário, com a eterna cara de ter tido uma noite má e que quase se gaba do seu comedimento, de que usar mais palavras do que as necessárias é uma fraqueza de caráter. Trata-se de um homem amargo que engole mais do que cospe. Um perdedor, um ex-sibarita que passou pelo pelourinho da pior crise económica da história e que sobrevive à margem da sociedade, em recantos onde a luz do sol não chega. É lá, por exemplo, que vive a sua personagem Sosa, o advogado de Carancho –uma ave necrófaga que paira por truculentos acidentes de viação e hospitais– no filme de Pablo Trapero. O taxidermista de A aura, cuja epilepsia é a expressão do seu mal interior. O mesmo mal interior que mantém prisioneiro Benjamín Espósito, o protagonista de O segredo dos seus olhos, apesar de todas as suas tentativas para o exorcizar.
São personagens que, se há alguma coisa que os resgata, é a dose de ironia contra si próprios. Como Corvalán, o detetive privado numa Buenos Aires peronista de O sinal, filme a preto e branco que Darín também realizou. Quando uma misteriosa mulher fatal o procura para um trabalho e lhe diz que tem boa fama no meio, ele responde acendendo um cigarro: “Depende. Uma vez segui durante seis meses um tipo que estava morto havia cinco anos”. Para um ator, o caminho do prestígio passa pelos papéis dramáticos. A comédia é considerada um género menor –perguntem a Jim Carrey: anos a deslocar a mandíbula com as suas caretas não lhe granjearam nem metade da consagração que colheu com The Truman Show. Para Darín também: desde que começou a fazer filmes dramáticos, começaram a levá-lo a sério. O drama deu-lhe a possibilidade de atravessar os seus próprios limites e reinventar a sua reputação. Mas não a ponto de o tornar num produto de exportação global: Darín recusou dar o grande passo de se transformar numa estrela de Hollywood. Ocasiões não lhe faltaram, principalmente depois do Óscar de O segredo dos seus olhos. Algumas mais descabidas do que outras. Como quando lhe propuseram o papel de um narcotraficante mexicano nos Estados Unidos. “Digo: com muito esforço poderia conseguir fazer de narcotraficante. Mas mexicano, e em inglês!”, ri-se em argentino.
TERCEIRO ATO
No dia depois de nos termos despedido à porta de sua casa pela segunda vez, Darín telefona-me: tínhamos combinado eu ir visitá-lo ao set de um filme que estava a filmar e quer avisar-me de que irá chegar ao nosso encontro quinze minutos mais tarde. Quase ninguém, e muito menos uma estrela de cinema, se dá ao trabalho de telefonar em pessoa para nos avisar de que talvez nem chegue a aparecer. Darín, pelo contrário, telefona-nos horas antes do encontro para nos avisar de que vai demorar mais um quarto de hora. Horas depois, com efeito, Darín chega pontualmente tarde no seu BMW preto e estaciona-o a alguns metros da entrada de um clube de vídeo chamado El Padrino. Tem o mesmo casaco preto impermeável do dia anterior, quando fomos tirar fotografias no bairro dele. Havia sempre alguém a pará-lo para o cumprimentar, ou a gritar do carro –Darín, mestre, grande ator, capo–. “Não se farta de toda esta atenção?”, perguntei-lhe na altura, e pela primeira vez abriu-se uma fenda na sua armadura de bondade: “Estou pelos cabelos”, cuspiu Darín, mas com um sorriso irónico, pelo que não percebi bem se estava a representar ou não. “É por isso que não saio: quando não estou a trabalhar, fico sempre em casa”. Mas hoje também todos se aproximam para o cumprimentar.
Às vezes, por ser bondoso de mais, sofre as consequências, como quando uns índios wichi, em sinal de gratidão e sem aviso, pintaram em todas as casas vizinhas da sua um estrondoso “Obrigado, Darín” com tinta preta
À maneira argentina, Darín cumprimenta cada um com um beijo e um abraço. O beijo é mais um leve toque de bochecha, mas o abraço tem a substância de um aperto e a sua palmada. O primeiro a recebê-lo é Gonzalo Roldán, dono do clube de vídeo e realizador do filme El destino de Lukong, para quem Darín veio fazer uma breve aparição. O Lukong é um rubi, e à sua volta tece-se uma comédia de enredos e de ação. Para Roldán, um jovem cineasta, esta não é a primeira experiência no mundo do cinema amador: já filmou, com a ajuda do seu bairro inteiro, Sin querer queriendo, uma história quem sabe quão autobiográfica sobre o dono de um clube de vídeo que à noite se transforma num assassino em série. Graças ao fim benéfico para o qual está agora a filmar o seu filme, cujos lucros, supõe-se, irão para um refeitório infantil, o amador conseguiu que alguns atores famosos participassem no projeto. Darín é um deles. Convencê-lo não foi tanto um mérito do jovem realizador de cinema: para iniciativas solidárias, Darín parece estar sempre pronto: seja por uma menina desaparecida, por uma campanha da Greenpeace ou pelos índios wichi no seu litígio pelas suas terras ancestrais. Às vezes também, por ser bondoso de mais, Darín sofre as consequências, como quando os mesmos índios wichi, em sinal de gratidão e sem aviso, pintaram em todas as fachadas das casas vizinhas da sua –salvo na dele– um estrondoso “Obrigado, Darín” com tinta preta.
Esta tarde, o seu entusiasmo do dia é atuar no filme de um cineasta amador que usa uma câmara do tamanho de um telemóvel. Aparafusada a um tripé em latão, Roldán tem outra, suspensa como se fosse uma girafa raquítica sobre os atores, que faz de microfone. Numa rua do bairro de Palermo, Darín interpreta durante cinco minutos o pai do protagonista, que é o próprio Roldán. O filho chega e pede-lhe dinheiro emprestado para alugar uma funerária e encenar um falso velório. O ator agarra-o pelo colarinho e abana-o como um pai desesperado. Darín leva a sério cada intervenção sua. Comporta-se, sem ironias, como se fosse o próprio Francis Ford Coppola que o estivesse a dirigir, embora desta vez quem o dirige seja o dono do clube de vídeo El Padrino: relê o guião, ensaia a sua cena, distribui conselhos, inclina-se por trás do visor da câmara, julga a sua breve representação na cena recém-filmada, pede um segundo take; sorri aos transeuntes, dá autógrafos, cumprimenta com a mão os que olham das janelas. Sem paternalismos, sem o sorriso complacente de quem faz uma boa ação por uns rapazes, Darín não está lá só por ser um profissional: está lá por amor próprio, por generosidade, por prazer. O ator, assim tão simples, está a divertir-se imenso. Afinal, em vez da hora que tinha prometido ficar ao cineasta amador, Darín fica três horas e meia. Nesse lapso, um desconhecido aproxima-se do cenário inquieto: também tem o apelido Darín. Ambos, fora do argumento, percorrem como dois macacos a sua árvore genealógica. Meia hora depois chegam à conclusão de que são parentes. O homem volta para casa muito contente, com o título honorário de ser um primo afastado do ator. Ganhou o dia. Entretanto, o dono do clube de vídeo e cineasta amador continua pálido as suas filmagens: há três noites que não dorme bem com a emoção e a responsabilidade de dirigir Darín. Hoje –diz-me– foi o dia mais feliz da sua vida.
EPÍLOGO
Na última vez que vejo Darín, uns meses depois da sua representação em minúscula no filme de Roldán, tem a cara de um homem a quem roubaram o BMW preto. É uma aprazível tarde de outono e, na cozinha de sua casa, ele e o filho oferecem-me uma representação exclusiva: “Velho, levei o teu carro ontem à noite, diz-lhe o Chino. O Darín mais velho não tarda a desarmar a bomba do mais novo com um casual: “Ai é? Da próxima vez deixa-me um recado”. Di-lo sem deixar de fazer o café na sua máquina. O pai Darín sorri, enquanto me atira um olhar que interpreto como de pai para pai. Veste uns calções pretos e ténis também pretos. Pouco depois, aparece Florencia Blas, a mulher-morcego, e cumprimenta-me com um abraço. Calça umas botas de equitação. Minutos depois estamos sentados na sala da casa, com um café à frente, o sol da tarde a entrar pelas janelas e a única companhia do cão. A cena é um postal da boa vida. De repente, a pensar no mal-humoradas e perdedoras que as suas personagens são, pergunto-lhe se um ator é um mentiroso. Um hipócrita.
–É um jogo –responde-me Darín–. Claro que os atores mentem –concede, enquanto acaricia com uma mão a cabeça do cão–. Mas também os que estão na audiência mentem –insiste–, enquanto brincam a acreditar que aquilo que estão a ver no ecrã é real. E a sua disponibilidade para acreditar, que é diretamente proporcional à verosimilhança do que estão a ver, torna-os cúmplices necessários.
Mas há uma hipocrisia, ainda mais grave e substancial, que Darín reclama principalmente para ele.
–Ser ator é um descanso de nós próprios –diz-me a título de confidência–. Dá-me a impressão de entrar e sair da minha vida.
Darín acabava de regressar da selva do Brasil. Lá filmou cenas de O elefante branco, onde interpreta um padre da teologia da libertação. A luz do Sol entra de forma oblíqua pelas janelas da sua sala e chega a tocar-lhe nos pés.
–Ser ator permite-me ser um tremendo filho da puta ou alguém que dedica a sua vida a ajudar os outros. Eu não sou nenhuma dessas pessoas –avisa-me–. Mas ao mesmo tempo devo ter alguma coisa de cada uma delas em mim.
Há já algum tempo que acabou a hora que me tinha prometido. O ator não faz um único gesto de querer ir embora. Aliás, parece ter todo o tempo do mundo. Continua a falar, já não de teoria teatral ou de algum episódio dos seus filmes. Só falamos, falamos dos filmes que acaba de ver, como Shame, no qual o impressiona o ponto de vista tão cru e tão poético sobre o sexo. Falamos do projeto da sua próxima viagem em família: uma visita a Lago di Cadore, em Veneto, no norte de Itália, de onde a sua família vem e onde se celebra todos os anos uma reunião dos Darín de todo o mundo. Nunca foi a nenhuma: este ano propôs-se destronar um arquiteto norte-americano, que durante muitos anos foi o Darín mais ilustre. Reúno o meu gravador desligado e o meu caderno de apontamentos, sento-me novamente no cadeirão e cruzo as pernas. O Sol de outono vai-se tornando opaco perante a passagem da tarde e Marón dorme estático aos pés do dono. Então Darín pergunta-me com os seus olhos azuis:
–Outro café?